O direito de resistir, por Gleyse Peiter (*)

 

1. As crises

Foto: Ana Nascimento / MDS

No momento existem três crises na sociedade brasileira: econômica, política e sanitária. Nenhuma delas é nova, mas se aprofundaram, ou de certa forma, ficaram mais explícitas e visíveis, a partir do acontecimento da pandemia da Covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Do ponto de vista dos trabalhadores, as ações de precarização do trabalho e o crescente desemprego, ampliaram a privação e a crise que já estava em curso. São as populações mais vulnerabilizadas – pobres, indígenas, povos tradicionais, povos do campo e da floresta – que estão sendo as mais prejudicadas, com o aprofundamento das desigualdades, o sofrimento com a pandemia e o retorno ao flagelo da fome.

2. E como ficam os direitos de cidadania?

Levando em conta os direitos definidos na Constituição Federal de 1988 – tanto os fundamentais para a garantia da dignidade humana, quanto aqueles que asseguram o exercício da cidadania por meio da participação popular – é possível verificar que na conjuntura atual existe perda significativa desses direitos, que muito se agravou no último ano.

A atuação da sociedade – por meio de seus coletivos e movimentos sociais na prática da democracia participativa – ao propor diretrizes, fiscalizar e controlar a implantação de políticas públicas, tem o caráter de controle social, cujos instrumentos estão previstos no Art. 5° da Constituição. Nela estão definidos, dentre outros mecanismos, os conselhos de políticas públicas, estes regulamentados por lei – federal, estadual ou municipal. Com todas as suas contradições, é inegável como, ao longo dos anos, os conselhos contribuíram efetivamente para a construção das políticas sociais, sua implantação e monitoramento.

Em abril de 2019 o governo federal, interditando a democracia direta, emitiu Decreto (1) que extinguiu colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Cerca de 800 conselhos foram extintos(2) .

Mas, o que fizeram as organizações e os movimentos sociais, neste panorama hostil, para promover a participação social pelos canais institucionais?

Com o respeito às regras de isolamento social no cenário de pandemia, diversos coletivos sociais se reorganizaram e se articularam nas redes sociais, de forma a contribuir para a retomada e efetivação, em alguma medida, de políticas públicas que pudessem, rapidamente, contribuir para o abrandamento da situação de precariedade a qual muitas populações estão sujeitas.

No campo da alimentação, por exemplo, foram articuladas ações da sociedade organizada pela retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e para a entrega dos alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para as famílias dos estudantes que não estão frequentando a escola. Além disso, houve a criação de canais e espaços para ações de solidariedade para com os mais atingidos pela pandemia. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), a Central Única de Favelas, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e outros, como a Central de Movimentos Populares, estão articulando os movimentos parceiros para arrecadar e distribuir doações.

3. A manifestação e a participação social são crimes ou são direitos?

Foto Tânia Rëgo / Agencia Brasil

Além da sistematização do rompimento democrático institucional, há evidências de um processo persistente, em curso no Brasil, de criminalização contra movimentos sociais. Criminalizar significa transformar em crime, considerar ou tratar como crime alguma atitude, alguma manifestação.

Mas este processo não ocorre de modo simples ou aleatório. A criminalização se dá por meio de um método estruturado de violência física e simbólica, que adquire ares de violência institucional, na medida em que ocorre articulada entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, representantes do poder público – especialmente parlamentares – e o poder econômico. Os agentes do Estado, sob alegação da manutenção da democracia e da ordem, se utilizam de suas funções e vantagens de seus cargos para atribuir natureza criminosa às ações dos movimentos sociais organizados, principalmente suas manifestações.

O processo de desmoralização dos movimentos também parte da mídia conservadora, que omite e manipula informações e fatos referentes à atuação cidadã.

4. Lutar por direitos é legal?

Arte : Luiz Eduardo Lomba Rosa / COEP

Tendo como exemplo os movimentos do campo, onde as lutas pela terra e pelo acesso à água fazem parte da história brasileira, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentou no relatório “Conflitos no campo: Brasil 2019” um crescimento marcante da violência e do ódio contra as populações envolvidas em conflitos no campo: em 2010 houve 638 conflitos por terra e 87 por água. Em 2019, esse número cresceu para 1.206 e 489 conflitos, respectivamente, num total de 1.833, envolvendo cerca de 850 mil pessoas. Neste ano houve 32 assassinatos, 30 tentativas de assassinato, 201 ameaças de morte, 24 torturados, 107 presos e 82 agredidos(3).

Por conta disso, diz o Relatório que, no primeiro ano do governo Bolsonaro, houve uma mudança nas formas de luta dos movimentos sociais do campo, saindo das ações de ocupação, retomadas e acampamentos para as ações de manifestação.

Segundo análise da CPT feita ao longo de uma década, o ano de 2019 teve o maior número de manifestações, 1.301, envolvendo mais de 240 mil pessoas, cujo aumento dos protestos significa uma tentativa de resistência ao cenário de grande adversidade e criminalização dos movimentos sociais.

Ademais, o uso de força contra as pessoas nos protestos também caminha no sentido da criminalização das manifestações. Embora em 2010 tenha sido editada Portaria Interministerial(4) onde se definiu que o uso da força policial deveria seguir acordos internacionais e respeitar os direitos humanos – porquanto o direito ao protesto seja constitucional – o Estado agiu de forma a permitir o uso desproporcional e arbitrário do poder de coação dos agentes da lei, cuja impunidade se estabelece por conta da ambiguidade das sanções por abuso de suas atribuições(5).

Nas Jornadas de Junho de 2013, por exemplo, houve a utilização de variados códigos e leis penais para enquadrar e processar manifestantes presos durante os protestos, acusados de cometer crimes como formação de quadrilha, desacato, incêndio, dano ao patrimônio público.

A partir das Jornadas, além das legislações que já são historicamente aplicadas para restringir a liberdade de expressão, novas leis têm surgido como forma de repelir e gerar receio para aqueles que queiram ocupar os espaços públicos para apresentar as suas demandas. A mais complicada delas é a Lei de Organização Criminosa (Lei Nº 12.850/2013) que trouxe instabilidade jurídica na definição de associação criminosa. Tem sido usada para equiparar manifestantes que cometem delitos de baixa lesão a crimes graves cometidos por organizações criminosas.

Outra legislação que inibe as manifestações e criminaliza movimentos é a Lei Antiterrorismo (Lei Nº 13.260/2016), que disciplina o que seria caracterizado como terrorismo(6). Como é vaga a definição do que significa de fato um ato terrorista, pois pode ser o simples porte de algum objeto ameaçador, a lei possibilita ao policial decidir o que é ou não tal objeto ameaçador, como por exemplo, “porte de vinagre”.

5. E na pandemia?

Mesmo com este processo de fragilização da democracia, com todos os poderes envolvidos na construção da recente e preocupante conjuntura, é possível constatar que as ruas foram e são um espaço privilegiado de resistência e enfrentamento aos ataques institucionais e à criminalização dos movimentos sociais, povos e comunidades.

Com o acontecimento da pandemia do coronavírus e, portanto, a necessidade do isolamento social, as manifestações da sociedade civil e dos movimentos sociais como um todo ficaram impossibilitadas, criando a necessidade urgente da criação e ampliação de novos canais para mudar esse cenário.


(*) Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Marxistas (Lema), do Instituto de Economia da UFRJ.

(1)Decreto Nº 9.759, de 11 de abril de 2019. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal.

(2) https://oglobo.globo.com/brasil/decreto-do-governo-bolsonaro-mantem-apenas-32-conselhos-consultivos-23773337

(3)Conflitos no campo: Brasil 2019. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino; Coordenação: Antonio Canuto, Cássia Regina da Silva Luz e Paulo César Moreira dos Santos – Goiânia: CPT Nacional, 2020. p. 20.

(4)Portaria Interministerial Nº 4.226, de 31 de dezembro de 2010. Estabelece Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública. Ministério da Justiça.

(5) http://protestos.artigo19.org/direito_brasil.php

(6) https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/729397479/lei-antiterrorismo-e-a-criminalizacao-de-movimentos-sociais

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