Breve ensaio sobre a pandemia do novo coronavírus e o mito da conspiração chinesa, por Pedro Gama (*)

Nos últimos quatro meses, em meio à perene querela política e econômica entre EUA e China e à imensa crise sanitária mundial, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump se referiu ao novo coronavírus como um “vírus chinês”. O “novo coronavírus” é a identificação comum do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2, sigla de severe acute respiratory syndrome coronavirus 2, em inglês). A pandemia causada pelo vírus foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 e levou a óbito cerca de 280 mil pessoas no mundo todo, sendo esses os números do dia 10 de maio. Questionado se essa expressão refletiria racismo, Trump alegou que se referia à origem do vírus e negou uma intenção racista. Porém, americanos de origem asiática reportaram incidentes de injúria racial e agressões físicas devido à percepção de que a China teria disseminado deliberadamente a COVID-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

No dia 30 de abril, Trump voltou a alimentar as especulações sobre a origem da pandemia, oscilando entre teses de descuido acidental, negligência e ação proposital das autoridades chinesas. Além disso, Trump sugeriu que o vírus é fruto de criação humana ou de alteração genética a partir de pesquisas conduzidas em um laboratório de doenças infecciosas, sediado na cidade de Wuhan, o epicentro da dispersão virótica na China. Os ataques de Trump atingiram também a OMS, acusada de atenuar a responsabilidade chinesa e de agir como uma “agência de relações públicas” por seus elogios à conduta da potência asiática. Ainda que a CIA, a mais importante agência de inteligência dos EUA, e a própria OMS tenham descartado a possibilidade de que o novo coronavírus seja artificial, membros do governo Trump, como o Secretário de Estado Mike Pompeo, têm sustentado essas teses frequentemente e defendido que o governo chinês deveria “pagar um preço” pela forma como lidaram com a propagação do vírus.

Nas redes sociais, constata-se que são cada vez mais comuns teses que associam a China ao novo coronavírus e sua proliferação como algo perpetrado de maneira ardilosa e que visa malefícios, em especial, aos países ocidentais. Uma das teses recentes sugere que a tecnologia 5G da telefonia móvel, de alguma forma, contribui para a transmissão do vírus. Cabe enfatizar que empresas chinesas, como a gigante Huawei, lideram atualmente o desenvolvimento e a implantação dessa tecnologia a nível mundial. Essas empresas são alvo de acusações, como permitir atalhos em seus equipamentos e sistemas visando uma potencial espionagem pelo governo chinês, e sofrem ameaças e retaliações constantes por parte do governo norte-americano.

O livro clássico de Raoul Girardet, intitulado “Mitos e mitologias políticas”, fornece uma importante chave de leitura para a compreensão desse fenômeno atual. Um aspecto essencial dessa obra é a apropriação política de um imaginário conspiratório do qual as elites e os donos do poder tiram proveito. Em períodos de crise e conflito, há uma exacerbação dos mitos, como uma maneira de combater o “Outro”. A luta se trava, em especial, na conquista do imaginário.

Lançando mão dos complôs como pretexto, elites e governantes justificaram a eliminação de opositores e esconderam suas próprias falhas. Porém, não é plausível uma manipulação sem que haja uma condição prévia no imaginário coletivo que torne possível sua receptividade. Nesse caso, refiro-me ao anticomunismo, difundido historicamente em suas muitas versões.

Como afirma o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, a partir de meados do século XIX e, especialmente, ao longo do século XX, o espectro do comunismo se tornou uma força a assombrar os setores mais conservadores das sociedades. De fato, mais do que um “fantasma”, no intervalo de tempo entre a Revolução Russa de 1917 e a crise do socialismo real do final dos anos 1980 e início dos 1990, o comunismo adquiriu concretude, deixando de ser uma promessa e alternativa teórica. Se, entre seus defensores, o comunismo apontava para uma ruptura libertadora e humanitária e um indubitável progresso econômico e social, para seus difamadores, porém, sua efetivação significava a consumação de um gigantesco terror, do caos social e do desmoronamento da “boa sociedade”. A emergência e o fortalecimento de partidos e de ideais comunistas contribuíram para que surgissem sentimentos fortes e antagônicos. Nesse processo, nasceu o anticomunismo.

Movidos pelo medo e pela insegurança, grupos conservadores de diferentes matizes, como aqueles inspirados pelo liberalismo, pelos fascismos e pelo tradicionalismo católico, se formaram, articulando investidas contrarrevolucionárias, transformando-se em movimentos políticos a partir da percepção de uma escalada comunista que precisava ser contida e eliminada, fosse tal ascensão real, fosse exagerada de forma proposital. Assim, de acordo com Motta, o anticomunismo se manifesta em dois níveis distintos, mas que se complementam: de um lado, uma corrente de pensamento, com discurso e imaginários próprios; de outro lado, um movimento político que origina a prática e a militância organizada de grupos conservadores.

Recentemente, alguns membros do Estado brasileiro como o Ministro da Educação Abraham Weintraub e o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro reforçaram a visão conspiratória anteriormente descrita por meio de uma série de insinuações e afirmações. O mito da conspiração chinesa exacerbou paixões anticomunistas no Brasil, que ressurgiram e se mesclaram a um forte sentimento coletivo de repúdio às esquerdas, em geral, e ao Partido dos Trabalhadores (PT), especificamente. Nesse sentido, um dos discursos exemplares desse olhar se encontra no artigo publicado no dia 22 de abril pelo atual Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, em seu blog pessoal “Metapolítica 17: contra o globalismo”, intitulado “Chegou o Comunavírus”.

Ao expor e comentar trechos do livro “Vírus” do filósofo esloveno Slavoj Zizek, Araújo afirma enxergar na propagação mundial do novo coronavírus e na subsequente atuação de organismos internacionais, como a citada OMS, “o jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em autômato desprovido de dimensão espiritual, facilmente controlável”.

É preciso lembrar que, após a queda da União Soviética e do fim das democracias populares nos países da Europa Oriental no início dos anos 1990, outros países permaneceram simbolicamente representativos do comunismo. Entre esses países, pode-se destacar Cuba, Coréia do Norte, Vietnã e China. No caso específico do gigante asiático, não há consenso na literatura econômica sobre o atual regime de produção, considerando as reformas implantadas a partir do 1978 e que resultaram em profundas transformações sociais e crescimento econômico nos últimos quarenta anos. Sem dúvida, caracterizar a China como capitalista ou comunista faz parte de um debate complexo e polêmico.

Se a inserção chinesa no sistema capitalista internacional é inegável, é notória a conservação, em grande medida, da estrutura política surgida na Revolução Comunista de 1949, como o sistema de partido único e a ausência de eleições livres, apesar de adaptações pragmáticas feitas ao longo de décadas. Ao mesmo tempo, deve-se levar em conta a permanência de antigos símbolos associados ao comunismo, como o nome do partido que governa o país (Partido Comunista da China) e a bandeira nacional, majoritariamente na cor vermelha.

Assim, retomando Girardet, não deixa de ser notável que uma investigação dos fatos da atual conjuntura mostre que não há evidências empíricas substanciais que abonem a narrativa mitológica. Girardet realça que é preciso pensar no movimento sui generis em que a veracidade dos fatos e sua historicidade dão lugar à interpretação mítica, alimentada por um sentimento coletivo de incerteza, medo e ameaça, independentemente de sua proximidade real. Deste modo, os defensores das teses conspiratórias dão um rosto ao medo, conferem-lhe sentido, de forma que esse medo seja denunciado e enfrentado.

Um elemento crucial presente nessas teses é o objetivo que os conspiradores almejam e que vão ao encontro da narrativa mitológica: nada menos que o controle do mundo, de governos e povos, unificando-os sob um mesmo poder e autoridade global. Para alcançar esse objetivo, todos os meios aplicados são considerados oportunos.

Assim, a crença, que unifica a pandemia do novo coronavírus e a conspiração chinesa, acaba por fornecer alguma interpretação da realidade, apesar de essencialmente precária, em um tempo de profunda angústia, o que torna presente e futuro menos incoerentes e imprevisíveis.

Cabe ainda uma reflexão sucinta sobre os desafios das forças progressistas brasileiras na presente conjuntura. Para além de propostas concretas e objetivas, talvez um dos desafios mais complexos para o conjunto dos trabalhadores e das esquerdas brasileiras seja o enfrentamento aos grupos conservadores e reacionários nesse peculiar campo de batalha: o imaginário coletivo. Frente à ação do Estado brasileiro que estimula o aumento da precariedade e da informalidade do trabalho, a queda brutal da renda dos trabalhadores e o desemprego massivo, em um movimento político que antecede a eclosão da pandemia, não deixa de ser relevante a tentativa de releitura feita pelo Partido dos Trabalhadores ao período em que governou o Brasil, caracterizando-o grosso modo como uma “era de ouro” de prosperidade do Brasil recente, pós-redemocratização. Entretanto, os problemas inerentes a essa narrativa são inevitáveis.

Por fim, os setores progressistas brasileiros devem refletir sobre quais caminhos trilhar na crucial disputa pelas consciências, pelos afetos e pelo imaginário coletivo. Nesse sentido, divisões recém-surgidas nos grupos conservadores e reacionários não devem ser ignoradas, mas analisadas atentamente e exploradas com cuidado.

REFERÊNCIAS

‘Absurdo total’: cientistas condenam ‘teoria’ espalhada na internet de que 5G transmite coronavírus. BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52194322. Acesso em: 12 abr. 2020.

As últimas notícias sobre a pandemia de coronavírus. Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/as-%C3%BAltimas-not%C3%ADcias-sobre-a-pandemia-de-coronav%C3%ADrus/a-53384831?maca=bra-newsletter_br_Destaques-2362-xml-newsletter&r=7716348800746230&lid=1480030&pm_ln=26349. Acesso em: 10 mai. 2020.

As principais notícias sobre a pandemia de coronavírus (11/04). Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/as-principais-not%C3%ADcias-sobre-a-pandemia-de-coronav%C3%ADrus-11-04/a-53093786. Acesso em: 11 abr. 2020.

Chegou o Comunavírus. Blog Metapolítica 17: contra o globalismo. Disponível em: https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus. Acesso em: 02 mai. 2020.

China acusa Weintraub de racismo e difamação. Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/china-acusa-weintraub-de-racismo-e-difama%C3%A7%C3%A3o/a-53041850. Acesso em: 11 abr. 2020.

Como funcionam as eleições e o partido único da China. Nexo. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/10/19/Como-funcionam-as-elei%C3%A7%C3%B5es-e-o-partido-%C3%BAnico-da-China. Acesso em: 10 mai. 2020.

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GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 25-62.

Huawei: Por que os EUA consideram a gigante chinesa de tecnologia uma ameaça à segurança nacional. BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46510746. Acesso em: 12 abr. 2020.

MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. Anticomunismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins. Dicionário crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2000. p. 49.

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SOUZA, Herbert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Editora Vozes, 1984.

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Trump harshly blames China for pandemic; a lab ‘mistake’?. The Washington Post. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/politics/us-intel-coronavirus-not-manmade-still-studying-lab-theory/2020/04/30/39ee3172-8aea-11ea-80df-d24b35a568ae_story.html. Acesso em: 03 mai. 2020.


(*) Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ e pesquisador colaborador do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA) da UFRJ.

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