É “só” sobre estátuas? Uma reflexão sobre a contestação do poder no Brasil pelo escravizado colonial e neoliberal, por Patrick Oliveira (*)

 “Para aqueles que dizem que a gente precisa ir por meios democráticos, o objetivo do ato foi abrir o debate. Agora, as pessoas decidem se elas querem uma estátua de 13 metros de altura de um genocida e abusador de mulheres”

Paulo Galo

O abolicionista baiano Luiz Gama nos ensinou que toda morte de senhores de escravos promovida pelos próprios escravizados é um ato de legítima defesa. O que podemos  extrair do ensinamento do Doutor Gama é que a abstração do direito – da lei e da ordem – enquanto conjunto de regras de sociabilidade não é desconectada das contradições políticas e de classe da história; pelo contrário, todo molde de jurisprudência segue as relações ideológicas dominantes de cada forma de organização social. É um braço do Estado para defesa formal da sociedade que está postada. Por isso, na escravidão, um escravizado assassinar seu senhor era uma insanidade para os estamentos dominantes, de maneira que, por certo, o sujeito iria ter a morte como punição – depois de muita tortura. A punição da contestação sempre serviu, acima de tudo, como exemplo. Essa abstração de justiça esteve internamente vinculada ao poder material que o senhor detinha para literalmente ordenar toda a sociedade em torno de seu mandonismo.

Após o fim da escravidão, o negro foi substituído pelo imigrante e as favelas se tornaram as novas senzalas – eis a liberdade e justiça, diziam os senhores! Culturalmente o negro permaneceu no mesmíssimo papel que atuava na colônia: um objeto descartável, que o expurgo total de sua imagem e corpo seria melhor para um Brasil moderno. Como nos ensinou a professora mineira Lélia González, essa neurose cultural significou a construção intersubjetiva popular de uma denegação do brasileiro ao próprio Brasil e, sobretudo, ao próprio brasileiro.

A neurose brasileira construiu a identidade nacional à margem de sua própria estrutura e multiplicidade étnica, de modo que os heróis e patriotas são os invasores – eis a razão de ser dos monumentos. A imagem de vadiagem, miséria e vagabundagem para a massa dessa “nação” é a forma consolidada dessa lógica neurótica. É algo que, nessa sociedade, compartilhamos intersubjetivamente desde o berço. Por isso, a contestação do domínio desse poder do pensar, do agir e do querer nunca obteve aceitação dentro das classes dominantes brasileiras – a razão de justiça nasce sendo a justiça, assim como, por exemplo, o EUA é a América. Há mais de 500 anos a contestação disso tudo é tacitamente proibida.

Percebemos, então, que essa abstração do direito enquanto instrumento social de justiça esteve sendo formada dentro de si como instrumento social necessariamente vinculado à essa lógica neurótica de culpabilizar – e fazer justiça de forma policial – o oprimido. O tribunal neurótico viola completamente suas próprias regras jurídicas para oprimir e segregar os maltrapidos desde o espírito até a carne, especialmente se for carne preta. A “violação”, o malabarismo jurídico, da forma direito é a própria razão de ser da forma direito em prol da classe dominante que a criou. É o campo de ação dos tecnocratas ideólogos do pensamento e ação do opressor. Um Estado policial plenamente ativo e subordinado a essa forma direito é a própria representação dessa “violação” do direito – ora, diz a neurose: “vagabundo e desajustado têm que ir em cana mesmo!”. A violação é o próprio modo de agir dessa lei e ordem e, por isso, é a forma solidificada nas subjetividades, pois o ato da autoridade violar a lei e ordem se tornam representações normais dessa própria lei e ordem. Porém, paradoxalmente, a neurose brasileira criminaliza o jeitinho do oprimido, mas não contesta radicalmente o jeitão do opressor. Parece uma lei newtoniana em que tudo se move em prol do opressor. A violência é intersubjetivamente posta como fim único nas lutas pelo poder social, mas, repare, nunca de baixo para cima, pois a contestação da opressão e exploração se torna “coisa de quem não sabe o que quer da vida, coisa de vagabundo”.

Essa dinâmica no domínio do pensar e do agir está viva nos dias atuais. O que chamamos de neoliberalismo realça fortemente esse movimento do pensamento social brasileiro, porque, ao centralizar o ser como empresário de si – isto é, como uma espécie de agente em evolução cultural constante e competitiva a partir da seleção natural de Darwin –, simplesmente ignora (violentamente) toda essa história particular da “nação”, apagando, também, a construção do direito enquanto agente normativo da violência colonial. A depressão e ansiedade, por exemplo, são apenas algumas dessas armas opressivas do conteúdo neurótico sob a forma neoliberal. A questão social é criminalizada dentro de si desde sua expressão individual – o próprio corpo oprimido. A legítima defesa perde popularmente sua razão de ser, em troca da defesa inconsciente e irracional do próprio opressor. Tudo o que tange ao conteúdo da opressão e exploração se torna secundário no imaginário popular, pois a força ideológica do opressor nos oprime a pensar e atuar sob as próprias formas de lei e ordem que ele criou. A “justiça” violenta e abstrata do opressor se torna paradigma onisciente, onipresente e onipotente para o oprimido. O que entendemos como lei e ordem nessa forma de organização social é, em verdade, um conjunto de coisas vazias com fim social próprio, que domina as pessoas oprimidas e, por isso, tornam-se coisas concretas que podem e devem ser transformadas. São formas de solidificar o justo, o bom e o mau apenas a favor do opressor. Essa racionalidade instrumental que deriva daí é a expressão ideológica funcional para a inofensividade contestadora. O nascimento e hegemonia do protofascismo bolsonarista é, também, parte do produto dessa união neurótica e neoliberal.

Se a lógica neurótica brasileira já criminaliza o ócio do oprimido, o neoliberalismo, ao dizer “resolva seus próprios problemas ou morra”, intensifica essa lógica de forma escandalosamente brutal, porque põe o indivíduo de joelhos diante de aspectos que não tem nenhum controle. O neoliberalismo acomoda essa violência neurótica intersubjetiva e a amplia com a intensidade da precarização exploratória do trabalho, concebendo verdadeiras indústrias da depressão. O açoite criminalizador inibe intersubjetivamente a radicalização da contestação dos próprios problemas do cotidiano – afinal, “tudo é problema nosso, particular, resta cada um dar seu jeito – tem que se inovar!”.

Vale dizer, ainda, que esse processo não se desenvolve no ar; pelo contrário, é instrumento vivo. Ele se desenvolveu, principalmente, a partir da excomunhão intersubjetiva do corpo negro, sobretudo da mulher negra, no desenvolvimento da sociedade de classes brasileira propriamente capitalista. Ele se desenvolve diariamente nos jornais e programas de tv sensacionalistas em que por todo dia é transmitido a caça dos policiais – os representantes dessa lei e ordem – aos maus, vagabundos e desviados (de Deus, da família). A máquina ideológica de criminalizar sistematicamente o oprimido enquanto indivíduo dentro da própria subjetividade do oprimido enquanto classe é uma máquina ampla, fundamental, dinâmica e ininterrupta.

Contudo, temos que lembrar que o oprimido não é inofensivo por natureza; pelo contrário, o militante piauiense Clóvis Moura nos ensinou que o corpo oprimido é uma rebelião radical constante. Ele questiona, reage, luta e transforma. Luiz Gama apontou isso ao apontar a audácia e ímpeto feroz dos escravizados em assassinarem seus mestres em legítima defesa. A contestação radical sempre existiu, mas a neurose sempre a encobertou e introjetou uma falsa passividade dentro de uma pretensa cordialidade brasileira. Por isso, não diferente, o escravizado neoliberal enquanto trabalhador mais explorado da sociedade ultraliberal atual se rebela diante de um genocídio pandêmico. Esse escravizado é dono de seu próprio corpo, ao contrário do escravizado colonial, mas, tal como seu antecessor, continua sendo açoitado pelos seu mestres – os capitalistas. É esse mestre da contemporaneidade que, assim como os senhores de escravos, promove a incessante chibata nos trabalhadores. E, ora, não sejamos esquecidos: quem garante legalmente isso é a própria lei e ordem! Inclusive, a passividade de grande parte desses escravizados atuais é por conta da subsunção à essa lei e ordem fortemente introjetadas em nós como razão única de justiça e moral.

Essa racionalidade neoliberal pode até reconhecer a tese de Luiz Gama como verdadeira para os tempos coloniais, mas, por conta do conteúdo neurótico, jamais reconhecerá sua validade na sociedade atual – ora, “vamos matar quem nos emprega, vamos nos aproveitar da situação de crise para fazer vandalismo? – temos que nos inovar, empreender”. O limite da reação contestadora do açoite é muito bem delimitado. O que é justo, bom e mau é muito bem delimitado. Quando o escravizado contemporâneo se rebela contra seus mestres – Uber, iFood, Rappi etc. – a lógica neurótica o criminaliza na raiz – ora, diz a neurose: “tá reclamando por que, vagabundo? Se não quiser trabalhar, tem quem queira!”. A contestação é sempre limitada às formas em que aparecem as opressões e as explorações – a própria lei e ordem –, nunca é permitido problematizar a origem, o conteúdo. A lógica neurótica limita, também, a canalização da rebeldia popular, pois, se é permitido somente um grito contestador das formas do problema, a canalização da reação e do ódio a quem produz o conteúdo do problema é internamente opaco na consciência do oprimido. Paradoxalmente, culpa-se, por exemplo, os sindicatos por não brigarem mais por melhores salários, mas, ao mesmo tempo, isenta-se parcialmente o burguês da totalidade que gera esse ônus ora, “ele gera empregos!”. É uma inversão generalizada da realidade, em que o opressor passa a ser o essencial e o oprimido, que gera toda a riqueza e é assaltado, o desprezível.

Por isso, ao queimar a estátua do bandeirante Borba Gato na manifestação do dia 24 de julho contra o genocida Jair Bolsonaro, o coletivo Revolução Periférica atravessou toda essa construção de pensamento em que o oprimido se torna o criminoso – o fora-da-lei. Como pode um representante direto do escravismo, estuprador e genocida de indígenas e mulheres, “merecer” um monumento por ser “histórico e notável” e a rebeldia popular, ao lutar pela destituição dessa forma de representação, seja imoral e criminoso? A neurose brasileira permite essa dicotomia. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, repudiou o ato e pediu união e tolerância – será que mais de 500 anos esperando por isso é pouco? O resultado dessas contradições da lógica neurótica é tão paradoxal na percepção da realidade política da classe trabalhadora que a derrubada de estátuas na Inglaterra e, sobretudo, no EUA após George Floyd, é, segundo a neurose: “força popular, diferente do “povo desunido” do Brasil que “não se une” para mudar a ladroagem política!” Na França é designado protesto justo sem nem saber a motivação, pois lá é um mundo belo a ser alcançado, aqui é vandalismo, pois “é o que temos”, restando o conformismo. O paradoxo neurótico, que assola a intersubjetividade do povo e torna opaca a leitura dos acontecimentos políticos, identifica como vandalismo o incêndio à representação da neurose, mas não é capaz de associar o mesmo a incêndios contra a própria herança nacional-cultural – Museu Nacional, Amazônia, Pantanal, Cinemateca, Museu da Língua Portuguesa etc.

O que o coletivo Revolução Periférica promoveu foi uma contestação radical desse conformismo das ideias, do poder político e ideológico do Brasil, algo que, como vimos, está fora do eixo limitador da lógica neurótica da sociedade brasileira. Ao descaracterizar a funcionalidade da assim chamada democracia, o que um dos milhões de escravizados modernos promoveu – o entregador Paulo Galo – foi uma contestação radical da abstração dessa lei e ordem como plenos juízes criminais na intersubjetividade popular. Promoveu-se um ato político radical-democrático para destituir representativamente um ato político opressor-colonial. Promoveu-se a necessidade de encontrarmos intersubjetivamente a classe dominante e seus representantes como inimigos. Promoveu-se um olhar crítico até mesmo para como as próprias ditas representações políticas do povo aparecem dentro dessa ordem neurótica – quer dizer, são representações que buscam transformar a neurose ou se acomodam com “o que tem” e, daí, buscam desenvolvimento sem sanar a própria neurose? Cabe aqui a reflexão crítica, por exemplo, da criminalização formal dos movimentos sociais pela lei antiterrorismo da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e os diversos programas de desenvolvimento nacional – Lula, Ciro Gomes, PSDB, PCdoB etc. – que simplesmente buscam desenvolvimento capitalista periférico sem efetivamente demolir as raízes neuróticas.

O que a Justiça de São Paulo promoveu, ao ordenar a prisão temporária e arbitrária de Galo, Géssica (que nem no ato estava) e Biu, foi a afirmação clara e direta de que a lógica neurótica dos mestres de hoje não aceita contestação nesse nível, com esse ímpeto. Ao desobedecer a ordem de soltura do Superior Tribunal de Justiça e logo depois decretar a prisão preventiva de Galo, Biu e Thiago Zem, a Justiça de São Paulo – representada pela juíza Gabriela Bertoli – demostrou que é muito mais funcional para a burguesia brasileira a manutenção sistemática da lógica neurótica, pois a “violação” do direito é somente a representação normal dessa própria neurose. Assim, a criminalização da contestação continua introjetada intersubjetivamente, de modo que a “violação” entra em cena só para aparar o que é violado por natureza. Com isso, reafirmar-se que o escravizado neoliberal deve aceitar seu lugar, tanto material quanto culturalmente – ora, diz a neurose: “trabalhe e consiga por si próprio que um dia chega lá!. Reafirmar-se o papel da abstração do direito enquanto braço de coerção e manutenção do poder material, político e ideológico dos mestres. Reafirmar-se a neurose como expressão ideal da contrarrevolução permanente das classes dominantes brasileiras, pois a contestação é aceitável apenas pela representatividade inofensiva (a própria “democracia” burguesa), nunca pela radicalização crítica em busca das origens do problema – ora, diz a neurose: “preto, mulher e gay têm que trabalhar em dobro pra chegar lá e parar de mimimi!”.

As estátuas representam a ponta do iceberg, mas têm a capacidade de agitar as estruturas formativas desse iceberg. Por isso, enquanto massa de escravizados neoliberais, precisamos relembrar Dr. Luiz Gama e seu ensinamento sobre a legítima defesa do oprimido, porque a criminalização da rebeldia social do oprimido é a ditadura em todos os níveis sobre todos os oprimidos, obrigando-os a aceitar seu lugar e morrer contente com “o que tem”. A criminalização da violência de forma abstrata inibe seu potencial como meio de transformação da condição de oprimido e explorado, representando a ditadura em todos os níveis sobre todos os oprimidos, obrigando-os a aceitar seu lugar e morrer contente com “o que tem”. Isto é, viver e morrer sem nada, mas viver sob as constantes sequelas materiais e espirituais das opressões e explorações. Afinal, como nos ensinou o jurista soviético Pachukanis, o assim chamado Estado Democrático de Direito unifica o ser ao mercado capitalista como um personagem jurídico, magicamente livre e igual, camuflando e unindo as contradições de opressão e exploração internas do modo de produção capitalista com a sua forma direito. O instrumento da prática penal é o instrumento de defesa da dominação de classe da burguesia. Por isso, o ato de legítima defesa do oprimido é necessariamente um ato de autodefesa em relação a violência do opressor. É uma sobrevivência contínua no inferno, como nos ensinou os Racionais MC’s. Portanto, a contestação do poder através do ataque às formas de representação do pensamento de quem exerce o poder pleno é uma forma representativa radical da legítima defesa do escravizado neoliberal. Toda essa luta contestadora radical é a roda que movimenta a luta em sua totalidade.

(*) Graduando em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e pesquisador/extensionista do LEMA e do NuEFem

Referências das imagens

Acessados em 12/08/2021. Em sequência de apresentação:

[1] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/25/quem-foi-borba-gato-estatua-de-bandeirante-incendiada-em-sp.htm

[2] https://bityli.com/jYtzz

[3] https://ujc.org.br/rafael-braga-com-tuberculose-a-contradicao-da-lei-antidrogas-que-diz-defender-a-saude-publica/

[4] https://domtotal.com/charge/2989/2020/07/justica-seletiva/

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