A luta contra a modernidade e o capitalismo contemporâneo.
Vivemos num mundo em transformação. O capitalismo parece se reproduzir numa contínua crise estrutural. O trabalho humano se encontra ainda mais subjugado às formas de dominação e controle por parte do capital e o atual padrão do processo de trabalho apropriador da dimensão cognitiva do trabalho humano parece ser o mais novo mote histórico do mundo do trabalho. O processo de trabalho se reconfigurou no sentido de uma maior flexibilização, automação e interatividade. As plataformas, os algoritmos e as redes sociais moldam pensamentos, comportamentos e subjetividades com o objetivo de criarem não só consumidores vorazes, mas, acima de tudo, indivíduos que vivem quase que em um modo esquizóide. Os sujeitos de nosso tempo estão alienados de si, do outro e da realidade concreta e objetiva que os condiciona. Uma situação que desafia a construção intersubjetiva de uma unidade entre estes mesmos indivíduos, principalmente no que diz respeito à uma luta organizada e direcionada à transformação radical da realidade. No pensamento filosófico os traços gerais dessa vivência capitalista hipertrofiada são curiosamente combinados com um trabalho militante de crítica à modernidade. Um contexto histórico como este nos permite dizer, portanto, que é no bojo das contradições da vida social eclodidas desde o fim do Pós II Guerra que a luta pela emancipação humana ganhou novas fileiras e o projeto moderno foi colocado em xeque.

Se foi na Era do Capital (para usarmos um termo do Hobbsbawn) que Marx magistralmente atacou qualquer noção de inexorabilidade histórica, foi na Era dos Extremos que passamos a desconfiar das promessas de liberdade, igualdade e fraternidade da modernidade. Descobriu-se que o sentido da luta por uma transformação social radical seria limitado se nos bastássemos a ir contra o capital e o Estado burguês. Abriu-se a Caixa de Pandora e libertamos os demônios da cultura eminentemente fascista do indivíduo moderno e burguês. O platonismo, o cristianismo, a razão científica à la Kant, o sujeito cindido freudiano, o romantismo, o patriarcado, a monogamia, o gênero, a nação, o colonialismo, a ordem, as raças, o édipo, o falo e tantas outras coisas foram tomadas como grandes problemas e são, por ora, os novos inimigos históricos a serem combatidos. Deste amplo movimento de crítica à modernidade a luta contra o capital não foi de imediato rejeitada, mas, pelo contrário, foi no contexto da prática militante e organizada de alguns partidos e movimentos sociais específicos do final dos anos 60 que cinco lutas ganharam força e se juntaram de modo complementar e/ou associado à luta anticapitalista. São elas: a questão ecológica; o feminismo; o movimento negro; a anti-colonização e o movimento LGBTQIA+. Contudo, é fundamental destacar que tais lutas só ganharam expressão no cotidiano da vida social ao longo das últimas décadas e se tornaram, assim, questões “da ordem do dia”, devido as condições e contradições próprias ao atual momento histórico do capitalismo. É por isso que estas questões estão em disputa pela ideologia dominante e pela práxis revolucionária.

A atualidade do movimento LGBTQIA+
A reação conservadora que busca solapar a base radicalmente crítica destas “novas” lutas no sentido de se apropriar das questões que as mesmas levantam, as adequando à ordem burguesa, obteve um relativo sucesso em meio às pautas feminista e ecológica. Isto fica evidente com a força do discurso da ‘sustentabilidade’ e do ‘empoderamento’ feminino (e de seus respectivos mercados). Já em relação as lutas antirracistas e anticoloniais a radicalidade vem se apresentando como a direção mais tenaz e coerente, até mesmo porque é impossível dissociar o colonialismo do imperialismo e do racismo. Além disso, os processos de formação econômico e social dos países de passado colonial tiveram a escravidão, o negro, e os nativos como elementos constituintes deste mesmo processo. Em todas estas quatro frentes de luta e de crítica o que há de comum é a existência de tensões e de disputas que oscilam entre a radicalidade da ruptura sistêmica e o alinhamento instrumental com a ideologia dominante. No entanto, em uma dessas “novas” frentes de luta a reação conservadora obteve um sucesso mais expressivo. Um sucesso capaz de aglutinar de modo mais rápido e menos aberto a controvérsias uma pauta com um sentido estratégico de adequação à sociedade capitalista, e não de superação da mesma.
Um tanto quanto distante de fomentar uma unidade de crítica estrutural e anti sistêmica ao modo pelo qual a sociedade burguesa/moderna reproduz as relações sexuais, os afetos, os desejos, os tesões, as paixões, as objetificações, os fetiches, as fantasias, e tudo aquilo que diz respeito ao misterioso campo da sexualidade, o movimento LGBTQIA+ vem se fragmentando em diferentes letras de uma mesma sigla que só tem aglutinado como unidade de luta a inclusão, o respeito à diversidade e o reconhecimento jurídico de determinados direitos por parte do Estado burguês. Isto é, o que tem dado a unidade a este movimento é uma pauta cujo sentido estratégico geral é a integração de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans à forma capitalista de identificação, expressão e vivência da sexualidade.

A sociedade do capital é a mesma que tem a família patriarcal cristã nuclear monogâmica burguesa como a instituição que organiza, estrutura e hierarquiza, por meio de mecanismos de produção de subjetivações homogeneizantes, os desejos, os afetos e os corpos que constituem o modo geral pelo qual os sujeitos vivenciam a sexualidade na sociedade capitalista[2]. O que esta produção obtém como resultado final é um padrão sexista essencialmente binário entrelaçado organicamente com o modo de produção e reprodução das condições materiais de vida no capitalismo. Sendo o trabalho o fundamento da vida em sociedade e o trabalho abstrato requerido à produção das mercadorias a forma de trabalho hegemônica na sociedade capitalista, a família é o ramo da produção total capitalista responsável pela produção das condições objetivas e subjetivas de controle e domínio dos corpos, dos desejos e dos afetos. Na sociedade capitalista patriarcal mono-nuclear, o padrão sexista-binário instituído pelo familismo burguês cristão é reproduzido de modo a garantir que a conexão entre corpo, afetividade e desejo (a própria dimensão relacional da sexualidade) se concretize em apenas duas séries disjuntivas. Uma série homem e uma série mulher.
A partir desta constatação, o que nos interessa aqui é provocar uma reflexão sobre como a luta LGBTQIA+ pode ser cooptada graças a flexibilização do modelo de família patriarcal cristã monogâmica nuclear burguesa em curso na pós-modernidade. Algo que pode fazer desta luta um caminho de reconfiguração do padrão sexista binário e não de superação das condições objetivas e subjetivas que o estruturam. Um tipo de mudança que está em conformidade com as formas específicas de organização do trabalho e da vida social no capitalismo contemporâneo. Colocando em jogo a preservação do poder de controle e domínio sobre os corpos, os afetos e os desejos.
A sexualidade edipianizada da sociedade capitalista
É interessante observarmos que na sociedade capitalista o sentido da existência dos indivíduos é dado pelo trabalho social produtor de mercadorias. Aqueles desprovidos dos meios de produção e reprodução de sua própria existência se vêm obrigados a vender a sua força e capacidade de trabalho em troca de um salário capaz de repor as condições objetivas e subjetivas de produção desta mercadoria específica (a força e capacidade de trabalho). São estes, os trabalhadores, que possuem o sentido de sua existência social reduzido a condição de trabalhador assalariado. Dado que o sentido do processo de produção é a acumulação de capital e não a satisfação das necessidades materiais de existência, a conexão única entre corpo, afetividade e desejo só pode ser vivenciada de modo alienado e abstrato. Isto é, uma sexualidade direcionada para a reprodução do capital e guiada pelo fetichismo da mercadoria. Por meio de imagens, idealizações, fantasias e esperanças o desejo se afirma como um desejo por consequência sempre acompanhado por um sentimento de culpa e incompletude. O que pode ser apreendido pelo constante sentimento de vazio, racha ou fragmentação é o fruto de uma subjetividade fundada na edipianização do desejo e na ideologia da falta que faz o seu processo de produção no âmbito da família patriarcal mono-nuclear burguesa. Esta família se refere a uma estrutura subjetiva preliminar que se coloca como universal nos primeiros anos de formação da subjetividade de cada indivíduo e que tem como principal função a reprodução do padrão binário sexista na forma de duas séries binárias disjuntivas, como já mencionamos. A série homem e a série mulher:
- Um homem de sexualidade padrão é aquele que possui a genitália concebida como masculina, deseja sexualmente exclusivamente mulheres, expressa virilidade e goza na posição de sujeito do desejo, ou seja, se satisfaz amando.
- Uma mulher de sexualidade padrão é aquela que possui a genitália concebida como feminina, expressa feminilidade, deseja sexualmente exclusivamente homens e goza na posição de objeto do desejo, ou seja, se satisfaz sendo amada.
O processo de formação repressor do sujeito moderno burguês que, segundo a psicologia está atrelado ao ato do recalcamento, causa uma dupla ação no inconsciente formador do sujeito social. Ao mesmo tempo em que a pura pulsão é direcionada, por causa do recalcamento, à produção do desejo, cria-se em contrapartida uma imagem do que o ato do recalcamento incidiu. Esta imagem desloca a formação do desejo num desejo de consequência que é sempre alimentado por imagens e fantasmas e acompanhado por sentimentos de culpa, incompletude e vazio. Alguns dos elementos que compõem o que podemos chamar de a ideologia da falta. A sexualidade em sua dimensão social precisa ser condicionada de modo que a produção desejante e o desejo de consequência sejam direcionados ao trabalho social e a reprodução do padrão binário sexista da família patriarcal mono-nuclear burguesa e cristã. O corpo, a afetividade e o desejo são formatados por condições de identidade, compulsão e modos operados por atos de repressão sexual e castração (no sentido simbólico). A sexualidade capitalista em que a produção desejante e o desejo de consequência revelam a sua essência social tem como condições determinantes para o estabelecimento da sexualidade masculina e da sexualidade feminina estes três pontos.
- A identidade sexual binária e disjuntiva calcada na genitália e justificada socialmente pelo corpo.
- O desejo erótico compulsoriamente heteronormativo combinado à uma única performance de gênero centrada na virilidade ou na feminilidade (a depender da genitália)
- Os modos de satisfação sádico e masoquista da relação disjuntiva entre os sexos que presumem posições de dominação e submissão.
Estas condições dizem respeito a correspondência triangular entre o corpo e o afeto, entre o corpo e o desejo e entre o afeto e o desejo que caracteriza o modelo padrão instituído pelo familismo burguês cristão. A depender das diferentes expressões que essa composição triangular pode assumir na sexualidade de cada um, verifica-se a existência de um grupos de indivíduos que se identificam como homens ou como mulheres que estão inseridos no padrão e um outro segmento de homens e mulheres que não estão inseridos neste mesmo padrão. Os primeiros representam aqueles que vivenciaram experiências de edipianização mais próximas do modelo do familismo burguês cristão enquanto que os segundos representam aqueles que receberam esta mesma referência de modo parcial. Estes últimos tiveram como saída a adequação de suas sexualidades ao padrão binário sexista. São homens e mulheres cujas sexualidades são concebidas como desviantes da normalidade padrão. Mas como em ambos os grupos se forma a série homem e a série mulher, o que diferencia estas séries entre os grupos é a maneira como a realização dessas condições se manifesta na vivência da sexualidade capitalista.
No polo corpo-afeto tem-se a identidade sexual, no polo corpo-desejo o desejo erótico compulsório heteronormativo atrelado a uma performance de gênero e no polo afeto-desejo o modo de satisfação sado masoquista (relação entre sujeito que deseja amar e objeto que deseja ser amado). Nos casos em que os triângulos compostos pela conexão entre os três polos produzem uma série homem ou uma série mulher que não atenda a todas as condições do padrão binário-sexual, a sexualidade é considerada desviante segundo a norma do familismo burguês cristão. O desvio pode se dar em todos os polos, mas nunca pode deixar de ser condicionado por estas três condições (de identidade sexual, compulsão e modo de satisfação) pois é isso que faz correr o risco de se perder o padrão binário sexual. Ou seja, pode se verificar um sujeito desviante na identidade sexual, no desejo erótico compulsório heteronormativo, na performance de gênero e também nos modos de satisfação, mas nunca um sujeito sem identidade sexual, sem um desejo erótico compulsório e sem um modo de satisfação.
Quando este desvio está presente na identidade sexual os indivíduos são considerados “trans” (binários) e a conexão entre corpo e afeto é dita como “invertida”. Já nos casos de homens gays e mulheres lésbicas não se verifica a compulsão do desejo erótico em direção à heteronormatização e a conexão entre corpo e desejo é dita homossexual. Um dos exemplos mais complexos são os dos casos em que o desvio se apresenta apenas no modo de satisfação ou tanto no modo de satisfação quanto na compulsão heteronormativa do desejo. Estes são os indivíduos reconhecidos como bissexuais. Isto é, os indivíduos homens e mulheres que podem ter assumido o desejo compulsório heteronormativo ou não, mas que assumem necessariamente modos de satisfação inversos em relação aos modos de satisfação do padrão correspondente a sexualidade masculina e a sexualidade feminina. Por último, é fundamental mencionar que os queers representam aqueles que assumem desvios em pelo menos uma das condições e que os assexuais são os que abriram mão de uma vivência corpórea da sexualidade.
As transformações na família burguesa e cristã do capitalismo contemporâneo.
As condições antes mencionadas revelam o quanto é custoso à sociedade capitalista mobilizar os recursos objetivos e subjetivos necessários à reprodução deste tipo histórico específico de sexualidade. É evidente que, ao se alterar as condições de produção e de reprodução da vida social viabilizadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, o familismo burguês-cristão passa a sofrer as consequências dessas mudanças. Caso o processo de desenvolvimento das forças produtivas se dê no sentido de uma retransformação estrutural em sua base técnica de operação básica, a manutenção do familismo burguês cristão demanda a incorporação de todos aqueles considerados como desviantes no padrão binário sexista, sob a pena de (des)edipianizar o desejo livre e perder e domínio sobre os corpos, os afetos e os desejos. Domínio este imprescindível à reprodução do capitalismo.
O neoliberalismo é a ideologia dominante de um capitalismo informatizado, digitalizado, virtual, conectado em rede e automatizado. A preservação da sexualidade edipianizada capaz de incorporar as sexualidades desviantes depende de uma mercantilização das mesmas. Do aumento do fetiche da mercadoria em última instância. Foi a partir da criação deste grande mercado reconhecido por vezes como comunidade LGBTQIA+ que o capitalismo reestabelece cotidianamente as condições de edipianização das sexualidades antes vistas como desviantes, ocasionando assim as transformações nas relações familiares. O grande atacadão de vendas de sexualidades desviantes abre concessão para desvios em todas as três condições (identidade sexual, desejo compulsório normativo e modo de satisfação sado-maso) mas não abre mão do domínio sobre os corpos, os afetos e os desejos organicamente reproduzido pelo sistema binário sexista. Ou seja, nunca sendo possível deixar de ser homem ou de ser mulher em pelo menos uma das condições estruturais[3]. A “nova família do século XXI” passa a aceitar homens gays, mulheres lésbicas, homens e mulheres trans, homens e mulheres bissexuais, homens e mulheres assexuais, mas nunca aqueles que não são nem homens e nem mulheres, seja em relação à identidade sexual, à atração sexual, à modalidade de gozo ou o seu conjunto. A primeira grande diferenciação histórica entre os humanos, o sexo binário, se mantem como a forma de controle do corpo, do desejo e do afeto primordial e originário[4].
O modelo familiar burguês cristão passa a admitir pais do mesmo sexo, regras menos rígidas, formas menos repressoras de formatação da subjetividade, orientações do desejo sexual mais ambíguas e, em alguns casos, até mesmo mais abertas ao dualismo. A relação da criança com os pais deixa de ser algo tão preponderante nas primeiras experiências de socialização (fazendo com que outras figuras ganhem protagonismo nesse processo). Os afetos e sentimentos típicos de uma estrutura familiar patriarcal e repressora deixam de ser tão marcantes e decisivos na constituição da subjetividade dos indivíduos, os tornando mais abertos a novas experimentações e vivências. A performance de gênero e os desejos sexuais antes vistos como dissonantes passam a ser mais aceitos, normalizados e naturalizados.
O modo como a sexualidade é vivenciada neste tempo histórico do capitalismo pós moderno está sempre em relação com o padrão binário sexista. Um padrão que cumpre um papel social importante dado que é este padrão o responsável por dar sentido e corpo as primeiras formas de socialização dos indivíduos com os seus respectivos sexos. As transformações históricas mais recentes do capitalismo tem o permitido relativizar e flexibilizar este padrão na medida em que o binarismo e o sexismo são no conteúdo preservados e na forma alterados. Ou seja, os gêneros e as sexualidades (frutos desse padrão), que antes eram vistos como desviantes, são incorporadas ao padrão os transformando e remodelando num sentido que reforça e universaliza o binarismo e o sexismo. Ao invés dessas transformações serem caminhos de ruptura e de construção de composições múltiplas entre corpo, afeto e desejo, elas são os caminhos que reestruturam a essência da coisa. O sexo binário continua sendo produtor de identidades sexuais, o desejo erótico continua sendo compulsionado à heteronormatividade e os modos de satisfação continuam preservando a relação de dominação e submissão entre sujeito e objeto. O que é o masculino e o feminino ganham mais independência em relação ao seu pressuposto justificador físico e/ou biológico, da mesma forma que a homossexualidade, a bissexualidade e a transexualidade passam a ser encaradas como sexualidades capazes de reproduzirem o próprio padrão, agora mais diversificado e ampliado. Assim, portanto, nem o binarismo e nem o sexismo ficam ameaçados, mas pelo contrário, expandem os domínio sobre os corpos, os desejos e os afetos.

Ao abrir concessões, o padrão binário sexista se reformula, abrigando o que antes se colocava em oposição a ele. Uma transformação recheada de contradições. As mulheres passam a se libertar da posição objeto sem necessariamente romper com a relação de dominação entre os sexos que requer um sujeito e um objeto. Acabam se “empoderando”, ou melhor dizendo, se “falicizando”. Do mesmo modo, homossexuais, bissexuais e transsexuais entram em cena no teatro edipiano como protagonistas de um roteiro que antes os tinha como antagonistas. O padrão binário sexista que fundamenta a sexualidade capitalista está aberto à negociação e agora permite às mulheres os “privilégios” do falo, aos homossexuais o casamento e a família mono-nuclear burguesa, aos transexuais o direito de escolha da identidade sexual, e aos bissexuais o conforto em gozar o “gozo fálico” num ato sexual ‘sado-maso’ com um homem ou com uma mulher[5] (não monosexuais). A sexualidade capitalista se reformula mantendo o sistema binário sexista, isto é, mantendo o sexo, o casamento, o familismo burguês cristão e a relação sexual sado-maso. A capacidade deste padrão em alienar o desejo, idealizar os afetos, fetichizar os corpos e reificar o gozo se mantêm. A sexualidade continua se efetivando pelo estabelecimento de uma identidade sexual binária, uma orientação sexual heteronormativa compulsória e uma modalidade fálica de gozo (basta lembrar quem ama na relação sado-maso e quem é amada).
Luta anti-sistêmica, totalidade e identidade.
Mas o quê que o sistema binário sexista não está disposto a abrir mão? Do poder que advém do controle da sexualidade! É só a partir de uma luta que estrategicamente se coloca contra este sistema que se pode libertar a sexualidade humana de ditames históricos compulsórios que sempre estiveram a serviço das relações de dominação entre seres humanos. Se a luta comunista é a única que historicamente tem dito como estratégia o fim da dominação do humano pelo humano (a origem do poder na propriedade privada), a luta pelo fim do binarismo e do sexismo é a única capaz de colocar em xeque o primeiro grande sistema de diferenciação e dominação que os seres humanos criaram entre si (o sexo binário). Isto deixa claro que não existe luta pelo fim da sociedade de classes se a diferenciação baseada no sexo continuar existindo como justificativa para a dominação de um sexo pelo outro (seja no nível objetivo ou subjetivo da materialidade). Porém, é no momento histórico em que a sexualidade capitalista é reconfigurada no sentido de sua preservação que a tática nesta luta aparece como uma problemática. Uma contradição do concreto real.

Se o sexo e o gênero são fenômenos eminentemente sociais, assim como o capital, só faz sentido estabelecer como tática de luta uma atuação que se dê em todas as dimensões em que o poder da sexualidade capitalista se efetiva. Seja na família, na escola, nas empresas, na vida pública, no Parlamento, na mídia, na Igreja, no Estado e no cotidiano da vida social etc. Trata-se de uma tática articulada à uma estratégia, ou seja, uma atuação que leva em consideração a totalidade e não caia no erro de achar que algumas instâncias particulares de poder são mais profundas ou centrais. Não faz sentido concentrar a atuação tática numa suposta diferença entre a dimensão micro e a dimensão macro do poder. Esta separação nada mais é do que uma forma analítica de compreender as diferentes fontes por onde o poder de dominação emana (a relação capital trabalho e a relação homem e mulher por exemplo). Quando isto se torna o motivo de segregação na luta pelo fim da dominação do humano pelo humano o que se está fazendo, na verdade, é tomando a parte pelo todo e impondo uma parte como um todo. O que consequentemente gera uma divisão do trabalho militante entre aqueles que se dedicam a práxis política (o trabalho objetivo) e aqueles que se dedicam a práxis clínica (o trabalho subjetivo) nem um pouco funcional para objetivos revolucionários. Estes trabalhos se completam organicamente nos indivíduos incidindo um processo de transformação social e subjetiva através da práxis revolucionária tanto no campo da luta política quanto no campo da luta sexual.
No entanto, assumir a visão da totalidade não significa universalizar e homogeneizar uma determinada condição, seja ela de classe, sexo, ou raça. Não se trata do trabalhador de hoje se tornar o burguês do amanhã, assim como não se trata do patriarcado de hoje se tornar o matriarcado do amanhã. Esta é a própria lógica concorrencial da sociedade fundada na relação capital trabalho. Uma lógica que, a partir da diferença, elege um particular, que se torna a tendência e passa a ser normatizado ao ponto de se tornar o novo padrão geral. Na sociedade capitalista os particulares só podem existir na medida em que garantam a futura reprodução desta mesma sociedade. Uma reprodução que exige o padrão binário sexista como base primordial do controle dos desejos, afetos e corpos. É por isso que ditar como atuação tática na luta por uma sexualidade livre a busca individual por uma singularidade que crie rotas de fuga ao padrão sem compreender como este mesmo padrão está organicamente associado à sociedade capitalista é uma atuação tática marginalizante[6] e não necessariamente revolucionária. A luta por uma sexualidade livre precisa ser coletiva, de todos e para todos. O que significa assumir a visão da totalidade reconhecendo a diferença como algo permanente em meio as mudanças, e não como fonte de particulares. É neste ponto que a interseccionalidade se configura como o sentido geral pelo qual as “novas” lutas do mundo contemporâneo podem servir como caminho para uma transformação social que inaugure o fim da dominação do humano pelo humano. Pois, se o humano não é um ser dotado de uma substância capaz de justificar a dominação pela diferença, mas sim, um ser que historicamente constrói a sua humanidade e as suas diferenças na relação com a natureza e com os seus pares, pode-se dizer que é na multiplicidades de experiências corporais, afetivas e desejantes que se pode fazer da diferença um comum, ao invés de ser pressuposto da particularidade e da dominação. O que é o horizonte da luta por uma sexualidade emancipada e livre.
(*) Doutorando do Programa de Pós Graduação em Economia da Indústria e da Tecnologia do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauille (LEMA/IE/UFRJ) e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-MARX) da Universidade Federal Fluminense.
[2] A sexualidade pode ser entendida apenas como potência de vida, porém, quando se tem em mente os efeitos do meio social sobre este tipo de pulsão-sentir se evidencia a unidade entre corpo, afetividade e desejo como o entendimento social do campo da sexualidade, ou em outras palavras, a sua dimensão relacional.
[3] Como é o caso de pessoas não binárias e pansexuais.
[4] Numa visão mais antropológica da coisa o feminino e o masculino podem ser compreendidos apenas nos fluxos que compõem o movimento orgânico do corpo. Mas como este movimento está sempre condicionado ao meio social, esta compreensão antropológica é atravessada pela sexualidade edipianizada do mundo e da sociedade burguesa.
[5] Neste ponto é interessante pontuar bem o sentido radical que a luta bissexual pode assumir. Dado que a diferenciação sexual baseada na presença ou não do falo é o que condiciona a relação de dominação entre os sexos, no que se refere ao ato sexual em si, isso se manifesta no modo como homens e mulheres exercem a fantasia e a satisfação sexual. Ou seja, no modo como gozam. Os homens se observam como sujeitos capazes de oferecer o prazer às mulheres e as mulheres se observam como os objetos condicionados a usufruírem desse prazer. O ato sexual se estabelece, assim, como uma relação de dominação sado-maso em que o prazer mútuo se realiza através das posições sujeito e objeto num jogo em que tanto o homem quanto a mulher podem dominar ou serem dominados. Numa relação como esta, a bissexualidade seria a capacidade de um homem ou de uma mulher assumir tanto a posição do sujeito quanto a do objeto, não se restringindo nunca a apenas uma delas. Esta é a forma alienada da bissexualidade no capitalismo. Porém, uma coisa é exercer esta fluidez de modalidades de gozo numa relação exclusiva apenas com mulheres ou apenas com homens (a bissexualidade alienada monosexual), e outra coisa bem diferente é exercer esta fluidez com ambos os sexos (a bissexualidade alienada não monosexual). Portanto, essas diferenças deixam perceptível que a radicalidade da luta bissexual se direciona na negação das modalidades de satisfação. O que exige a construção de relações entre afetos e desejos que escapam à sujeição sádica dominadora e à submissão masoquista dominada.
[6] Um indivíduo não binário pansexual é apenas um marginalizado, isolado e invisibilizado num mundo em que um padrão binário sexista é hegemônico. Uma identidade em negação radical incapaz de se viabilizar como uma força coletiva disruptiva e transformadora dada pela sua singularidade e não pela sua particularidade. O que deixa o padrão binário sexista em absoluto.