A “quadratura do círculo”: o casamento da Bolsa de Lula e o apetite reformista de Guedes, por Jaime León (*)

Fonte: Agencia Brasil

Há algum tempo, o presidente Bolsonaro anunciou que não tirará recursos dos pobres para dar para os miseráveis. Uma frase de grande potencial político-eleitoreiro, pois, de um lado, garante para o presidente apoio de boa parte da classe trabalhadora mais vulnerável. Ao passo que, por outro lado, fortalece os conflitos entre estes e outra faixa de trabalhadores que não estão em posição de tanta vulnerabilidade, os estratos de renda média. Não menos importante, esta afirmação do presidente oculta outras questões como o viés que próprio presidente sinalizou ao Congresso (para que recuse o veto presidencial) sobre o perdão de multas das entidades religiosas, a tributação sobre grandes fortunas, o genocídio da população negra e indígena ou o problema urgente da devastação da Amazônia e do Pantanal com queimadas e as irreversíveis perdas ambientais e socioeconômicas que ela implica. Mais destacadamente, esta frase do atual líder político do país tenta encobrir o papel do Estado na luta contra a crise socioeconômica que o país enfrenta e uma crise de maior fôlego que é a crise estrutural do capital e não consegue solucionar os reais problemas da economia brasileira. Centralizemos a discussão da atuação assistencial e emergencial do governo.

O “Renda Brasil”, era o possível novo programa assistencialista do governo, foi objeto de discussão nas pautas socioeconômicas e políticas nos últimos meses como possível programa de transferência de renda condicionada que, ao lado Auxílio Emergencial, seria mais uma forma de intervenção econômica do governo no combate à atual crise. No dia 15 de Setembro, Bolsonaro publicou vídeo no qual rechaçava algumas das propostas de sua própria equipe econômica, como o congelamento de pensões de idosos, deficientes e aposentadorias. Neste vídeo, mais uma vez joga politicamente com a população ao, supostamente, se posicionar contra a “perversidade” de sua própria equipe econômica que, segundo suas próprias palavras, não deve conhecer a realidade das pessoas que recebem estes benefícios. Não satisfeito, no mesmo vídeo o presidente deu um suposto ultimato à proposta do Renda Brasil ao dizer que proibirá dentro de seu governo a discussão sobre o programa pelo menos até 2022. Segundo o presidente, a principal política de transferência de renda será o Bolsa Família e ponto. Mas, como é de praxe com este governo, melhor não se ater às promessas feitas. Tanto é que pouco tempo depois, em 28 de Setembro, o governo deu um passo atrás e já anunciou um novo programa, o Renda Cidadã, sob a relatoria de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) por proposta por Márcio Bittar (MDB-AC). Vejamos mais de perto a lógica por trás destas propostas tão maleáveis, mas de forte impacto político.

No começo da pandemia, afirmamos que o governo Bolsonaro promovia uma economia política do genocídio através de uma política econômica da hecatombe. Em setembro de 2020, o Brasil registra mais de 141.000 mortes causadas por Covid-19, uma taxa de 13,6% de desemprego pela PNAD Contínua, um número absoluto perto de 12,9 milhões de desempregados, uma alta de 27,6% na taxa de desemprego nos últimos quatro meses, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); rendimento médio de R$2.500,00 e um salário mínimo para a dignidade do trabalhador e sua família, calculado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), de R$4.536,12 contra um salário mínimo nominal de R$1.045,00. Lembrando que o salário mínimo nominal é base para diversos benefícios constitucionais como BPC, abono-salarial, a aposentadoria rural etc. Ao mesmo tempo, a aprovação ao governo Bolsonaro é atualmente a maior desde o começo do mandato, estando num patamar de 37% dos brasileiros, que acham o governo ótimo ou bom. Como analisar estes números tão contraditórios?

Propomos começar relembrando que a proposta inicial do governo para intervenção durante a pandemia foi um Auxílio Emergencial de R$200,00 que foi contestado no Congresso e acabou sendo aprovado em R$600,00, podendo chegar a R$1.200,00 nos casos de mulheres que criam os filhos sozinhas. Em agosto de 2020, falava-se de cerca de 66 milhões de beneficiários do Auxílio Emergencial. A ajuda com certeza impediu um desastre maior para a economia brasileira. Se considerarmos que uma política importante do governo federal é o Programa Bolsa Família, que atende cerca de 14 milhões famílias com benefícios variando entre R$ 89,00 (o benefício básico) e R$205,00 ( o teto do benefício variável acumulado por cinco pessoas de uma mesma família), o valor do Auxílio Emergencial é relativamente alto.

Vale lembrar também que o Auxílio Emergencial quando comparado com o mínimo considerado digno pelo Estado (o salário mínimo nominal) representa mais de metade daquele valor e pode, nos casos em que chega a R$1.200,00, ser até maior que o salário mínimo oficial. Porém, não custa lembrar também, que o valor do Auxílio é em muito inferior ao rendimento médio auferido pelas e pelos trabalhadores brasileiros como citamos acima e tampouco está perto de atingir o mínimo considerado digno pelos padrões constitucionais.

O Programa Bolsa Família, implementado pelo Partido dos Trabalhadores em 2004 como continuação de outras políticas assistencialistas e condicionadas de renda do governo Fernando Henrique Cardoso, em nada supera a definição de uma política neoliberal e monetarista de transferência de renda proposta por organizações multilaterais como o Banco Mundial. Por não constituir um direito do cidadão, fica sujeito às variações político-eleitorais, o que deixa os beneficiários em situação de extrema vulnerabilidade. Sem contar suas condicionalidades que afastam qualquer aspecto de direito deste tipo de política assistencial. O Bolsa Família teve forte caráter político-eleitoreiro no sentido de que afetava de fato os extremamente pobres, mas tinha baixo poder distributivo e reduzido valor total do benefício.

A proposta era, analisando a fala de Bolsonaro no vídeo, tão somente substituir o Bolsa Família, sendo ao lado do Auxílio Emergencial, as principais políticas assistencialistas de governo. O ponto é: uma política assistencialista de governo é funcional ao capitalismo neoliberal ao manter benefícios muito baixos, que não onera os empregadores e sim o Estado, que não confere direitos aos trabalhadores e os mantém nos limites da subsistência e em conflito interno, dificultando as possibilidade de organização da classe. O Renda Brasil foi, no essencial, uma proposta ultraneoliberal de mais retirada de direitos. Era ventilado que o programa tiraria acesso aos direitos trabalhistas de seguro-desemprego, previdência social e FGTS; ademais os trabalhadores atuariam por meio da Carte Verde e Amarela (outra proposta de retirada de direitos trabalhistas como já apontamos em outra ocasião). O Renda Brasil extinguiria direitos como seguro-defeso (benefício ao pescador em tempo de preservação das espécies), salário família (complemento de renda do INSS para trabalhadores com filhos que recebem pouco) e abono salarial (outro complemento de renda constitucional que pode chegar até o valor de 1 salário mínimo) sob a velha justificativa de ineficiência econômica.

A substituição seria por um programa de baixo custo (cerca de 50 bilhões de reais) e clientelista que atingiria mais brasileiros (cerca de 10 milhões a mais do que o Bolsa Família) e com um valor de benefício algo maior (entre R$250,00 e R$300,00). Porém, por não seguir preceitos institucionalizados, não tem regra de correção do valor dos benefícios como por exemplo os atrelados ao salário mínimo (que têm correção anual, de acordo com a correção do salário mínimo nominal). Havia rumores de que, nos bastidores, a equipe de Guedes circulava as ideias de que para financiar tal programa voltariam o imposto sobre movimentações financeiras (muito parecido com a velha CPMF) e se aumentaria o imposto de renda e de que a fim de dar viabilidade ao programa e, por fim, seriam feitos cortes em pastas como saúde e educação.

Ocorre que a equipe econômica de Guedes é ferrenhamente submissa ao ortodoxismo econômico e toda sua política tem como pano de fundo as premissas das “finanças saudáveis” em que os gastos públicos devem obedecer a arrecadação fiscal, o que no caso brasileiro significa seguir à risca a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Regra de Ouro e o Teto dos Gastos. Este é um tripé macroeconômico que impede justamente aquilo que poderia atuar como saída para a atual situação de crise. Não satisfeita, a equipe econômica mina as possibilidades de efetivação dos preceitos constitucionais, em especial as predisposições sobre a Seguridade Social enquanto um direito do cidadão.

Sustentamos, como explicitamos num texto que critica a lógica das “finanças saudáveis”, que a lógica da equipe econômica de Guedes de que o Estado deve atuar com uma política de cobertor (tira de um setor para cobrir outra) é falsa. Ademais defendemos que o Estado deve atuar ativamente na economia para que o Brasil possa sair e se recuperar da crise. O reforço do neoliberalismo com mais reformas (como a administrativa) não darão conta do recado. Perceba-se que desde o governo Temer, as elites brasileiras sempre justificam o fracasso da economia brasileira à falta de reformas do Estado, por isso as reformas trabalhista, o teto dos gastos, a reforma previdenciária e a bola da vez: a reforma administrativa. Culpabiliza-se o Estado como uma entidade ineficiente para desmontar os serviços públicos e desmanchar os direitos sociais. Ideias fundamentais como a renda universal básica e permanente são totalmente obliterados.

A discussão em torno da viabilidade política do Renda Brasil evidenciou o que já estava subentendido há algum tempo: há tensões entre a agenda eleitoral de Bolsonaro e sua família com a equipe econômica do governo. Mais do que isso, o falso debate entre substituição de Bolsa Família por Renda Brasil, oculta a institucionalização de um programa de renda básica universal de forma institucionalizada, enquanto direito e sem condicionalidades. As transferências de renda seguem sendo usadas de forma política, sem a pretensão de sanar as contradições que o capitalismo coloca sobre as condições de vida da maioria dos trabalhadores, afinal não esqueçamos: a pobreza é uma necessidade deste modo de produção da vida específico.

Não por acaso, no dia de 22 de setembro, o presidente apresentou ao mundo na Assembleia das Nações Unidas a mentirosa ideia de que o auxílio emergencial de seu governo seja talvez um dos maiores, em termos monetários, no combate à pandemia no mundo. Outra jogada político-eleitoreira, dada a proximidade das eleições municipais. Neste sentido, sem poder contar com os efeitos positivos de um mercado de trabalho pujante, Bolsonaro foi astuto ao jogar para o público que não vai tirar dos pobres para dar para os miseráveis, não vai eliminar a lógica do programa assistencial neoliberal de maior sucesso eleitoral dos últimos tempos para criar um programa que se revela um tiro no escuro e uma aposta política arriscada. Por isso, a proposta recente do programa Renda Cidadã que possivelmente terá um valor inicial menor situado entre R$200,00 e R$300,00 se revela como politicamente factível, a equipe de Guedes pode sustentar seu compromisso de que fiscalmente responsável (saudável), atenderá o teto de gastos e contará com fontes novas de financiamento como a tal nova CPMF, até 5% dos novos recursos do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e os precatórios (valores devidos pela União á pessoas físicas ou jurídicas depois de decisão judicial).

O governo vem lutando internamente para achar uma solução que seja tanto economicamente alinhada com imperativos de uma política neoliberal que preze pelas reformas e agrade o empresariado (além da reforma administrativa, a tributária está em discussão também) e que seja politicamente frutífera com aqueles que Bolsonaro chamou em 28 de Setembro de “os invisíveis”. Esta busca pela “quadratura do círculo” contida no confuso debate sobre qual programa emergencial e assistencialista adotar, em detrimento de uma renda universal permanente, representa o que estas soluções neoliberais podem oferecer para problemas que na verdade são estruturais nas sociedade e economia brasileiras: uma caminhada incessante e infrutífera do ponto de vista dos interesses da coletividade.


(*) Professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do LEMA IE-UFRJ.

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