Como paralisar o estrangulamento de uma população que precisa respirar? Não é possível afirmar que há uma resposta fácil, única e simples para esta questão. Para respondê-la e, principalmente, intervir no sentido de manutenção da vida de negros, mulheres, trabalhadores e pobres, faz-se necessário compreender os sistemas de opressão, adoecimento e extermínio de grupos minoritários – o que, com toda certeza, não é simplório – e poder contar com reflexões críticas e apontamentos concretos de ações, intervenções e mapeamentos de causas e sintomas para produção de estratégias diversas. Certamente, demandará uma resposta complexa e não absoluta, que pode agrupar diversas áreas de conhecimento, inclusive que se organizem a partir de perspectivas teórico-ideológicas diferentes por associação, ou mesmo, contestação crítica.

Este texto reflete a parir da articulação das perspectivas e debates produzidos a respeito de opressão social e de dinâmicas político-econômicas trazidas por Mauro Iasi (2017) no livro “Política, Estado e Ideologia”, o conceito de “Necropolítica” trabalhado por Achille Mbembe (2018) e as contribuições em Psicologia Social a partir de suas abordagens que consideram o sujeito e as suas produções de subjetividade indissociáveis de sua experiência/vivência Social. Ainda, utiliza como exemplos significativos e simbólicos casos como o de George Floyd, homem negro norte americano estrangulado até a morte por policiais em maio de 2020, ou trazendo para o contexto brasileiro, como ocorreu com Pedro Henrique, homem negro brasileiro também morto por sufocamento pelo vigia de um supermercado no Rio de Janeiro, em 11 de fevereiro de 2019.
O que haveria de comum entre Pedro Henrique e George Floyd, dois homens negros e periféricos? O que haveria de semelhante entre Bolsonaro e Trump, dois homens brancos presidentes? Quais as aproximações entre o sistema político-econômico brasileiro e o norte americano? Quais os processos de adoecimento que se assemelham entre as populações minoritárias destes países?
De acordo com Iasi (2017), a força coercitiva policial não é a única forma violenta utilizada para a dominação e exploração. Aqui, acrescentamos ao debate produzido por ele, ao afirmar que “A ordem do capital degrada o ser humano em mera coisa” a noção de necropolítica de Achille Mbembe (2018), que aproxima estes dois exemplos apresentados no início do texto e em diversos outros casos de violências em que a cor se repete como alvo. Mbembe (2018) destaca que as opressões que se estruturam em raça, classe e gênero são ferramentas de controle do Estado para a manutenção do poder político. Também explica que este poder político decide em sua gestão quem e como irá morrer, não só matando, como gerando condições para tal.
A Psicologia Social traz contribuições neste debate para compreender estes sufocamentos, fruto de dinâmicas de opressões sociais, a partir de uma abordagem menos voltada para o biológico e o patológico e, mais esforçada no entendimento do sujeito e sua subjetividade intensamente atravessado pelas experiências e relações sociais. Com esta perspectiva fundamentam-se abordagens com recortes específicos, como por exemplo, os processos de adoecimento e a psicodinâmica do trabalho os estudos em relações étnico-raciais e representações sociais, auxiliando na analise de como o racismo influencia nas produções de subjetividade e provoca sofrimentos psíquicos individuais e coletivos (entendendo subjetividade como modos de pensar e agir).
Compreendendo que saúde, saúde mental não se restringe a fatores biológicos e a lógicas duais de bem/mal, certo/errado, doença/cura e patologia/normalidade; e que o campo social e as vivências/experiências do sujeito estão diretamente relacionadas ás dinâmicas de saúde, por exemplo, pode-se dizer que grupos minoritários são grupos submetidos á opressão, processos de precarização do trabalho, situações de adoecimento e de risco constante. Em plena pandemia do novo coronavírus, por exemplo, há pessoas em situação de vulnerabilidade imaginando do que seria “menos pior” morrer: de covid-19, de fome ou imprensado por um corpo policial. Não é possível respirar bem nestas condições, não há pausa para um respiro ou afrouxamento das violências que sufocam estes grupos. Isto se expressa, somatiza e ao mesmo tempo é sintoma, temos problemas, temos problemas para respirar, estamos sufocados socialmente e psicologicamente também.
Antes pudéssemos afirmar que a causa desta falta de ar pudesse ser somente ocasionada por transtornos, síndromes e ansiedade. Mas aqui falamos de um sistema amplo e perverso que, se não gera formas de vida adoecedoras, mata, pela necessidade de sustentar um modelo politico e socioeconômico. Até estes transtornos e síndromes podem eclodir a partir de processos de sufocamento da população ocasionados pela força do estado e de suas políticas.Será mesmo que estas doenças são influenciadas apenas por motivos hormonais? É possível respirar quando seu filho, favelado e negro vai ao mercado?
Há um longo caminho para tentar fazer o ar circular pensando no cenário atual de crises em que chegamos: crise sanitária, crise econômica, crise política, crise nas relações étnico-raciais, entre outras. Quanto mais oprimidas, mais sufocadas pessoas como George e Pedro estarão, seja pelo estado ou pelas políticas pautadas na lógica da desigualdade e exclusão social, desenvolvimentistas e de uma sociedade cujos pilares são estruturas racistas e capitalistas. Esta questão não está fechada, na verdade faz-se ainda um grande esforço para que seja aberta, mas, por hoje, este texto não consegue responder e precisa chegar ao fim. Afinal, sua autora, mulher negra, também precisa respirar.
(*) Psicóloga, artista e pesquisadora do Laboratório de Estudos Marxistas
DEJOURS, Christophe, A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2015
CANGUILHEM, Georges, O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
GUATAR I, F.; ROLNIK, S. Cartografias do Desejo. São Paulo: Graal, 1986.
IASI, Mauro. Política, Estado e ideologia na trama conjuntural. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr 2017
MBEMBE, Achille, Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018
Um comentário em “Nós não Conseguimos Respirar, por Kamilla Neves (*)”