Enquanto escrevo este texto a cidade do Rio de Janeiro inicia a flexibilização do isolamento social e a reabertura dos “negócios”. Segundo os números do ministério da saúde estamos no momento de maior número de contaminações diárias registradas. Pelos números da OMS o país chegou ao topo na lista de país em termos de taxa variação de novos casos registrados. Tudo isso com nossos registros cada vez mais maquiados. Simultaneamente o presidente Jair Bolsonaro vetou o repasse do saldo remanescente de R$ 8,6 bilhões do extinto Fundo de Reservas Monetárias para o combate ao coronavírus, após parlamentares aprovarem que o valor fosse repassado para estados e municípios. Mas nada disso pode ser mais considerado uma surpresa por qualquer brasileiro que acompanhe a conjuntura política nacional.
Desde o dia 21 de maio temos o laudo pericial que tomografou o caráter do governo em curso. No exame da reunião do dia 22 de abril apareceu uma mancha na imagem do país. A transcrição que foi publicizada, praticamente na íntegra, da reunião ministerial ocorrida naquele dia é reveladora da profundidade política e ideológica do atual governo, bem como de suas contradições. A presença constrangedora de um discurso vazio contra o gasto público, a corrupção e o cidadão livre em sua diversidade é a manifestação do autoritarismo subjacente ao projeto em curso. Contraditoriamente, este projeto se autoproclama democrático, liberal e modernizante.

Superando a estética escatológica do evento, há alguns pontos muito importantes a se observar daquele encontro. Em primeiro lugar, o comando explícito da reunião está nas mãos do ministro da economia, Paulo Guedes. Direta ou indiretamente, é a ele quem se dirigem todos os presentes, inclusive o presidente. A motivação do encontro foi a apresentação, pelas mãos do ministro da casa civil, o General Braga Netto, do Projeto Pró-Brasil, segundo o próprio, fora apelidado pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de o Plano Marshall brasileiro. A ideia era limpar o terreno entre o ministro do desenvolvimento regional e o ministro da economia sobre qual poderia ou deveria ser o papel do Estado em uma política de saída da crise econômica em curso. Crise esta provocada pela política econômica de restrição fiscal, justificada por uma lei de “responsabilidade” fiscal e aprofundada pela aprovação do limite do teto de gastos. No entanto, qualquer trabalhador que assista aquela reunião notaria o quanto aqueles ministros querem se convencer que não é a sua política a causa do próprio problema que diagnosticaram. Teimam todos que é a economia, e não os brasileiros, quem morre de corona vírus.
O tal Plano Pró-Brasil pretenderia enfrentar o problema do desemprego, que segundo o próprio presidente da república, já é tão expressivo que avalia que cerca de 10 milhões de postos de trabalho formais já “foi pro saco”(sic). O general-ministro afirma que o projeto busca a melhoria da produtividade e investimentos estruturantes, enquanto o ministro do desenvolvimento regional complementa dizendo que tem “visto governos extremamente liberais preparando programas de reconstrução”. A referência ao desemprego e a programas de recuperação poderia fazer com que o trabalhador tivesse um lampejo de esperança de que ele, maioria absoluta da população, era o foco, mas tanto Marinho como o presidente não deixam dúvidas de que a preocupação é com o capital. Marinho lembra que em crise “o Estado Nacional passa a ter um papel diferente como tomador de risco nesse momento em que há uma queda abrupta da liquidez” e coloca todas as suas fichas no pragmatismo afirmando que cada país vai utilizar as suas respectivas reservas de liquidez para resolver os seus próprios problemas de infraestrutura e de retomada das suas economias. – “Nós temos que ter segurança jurídica, senhor presidente. Respeito a contrato, senhor presidente. Capacidade de alavancar recursos privados com a inversão de recursos públicos sim!”
Praticamente em tom de desdém o ministro da economia afirma: “não vamos nos iludir. A retomada do crescimento vem pelos investimentos privados, pelo turismo pela abertura da economia, pelas reformas. Nós já estávamos crescendo”. Quem será que está se iludindo? Depois de anos seguidos de recessão e de baixíssimo crescimento, portanto de uma base significativamente deprimida, avaliar o resultado de crescimento de apenas 1,08% do PIB em 2019, portanto menor que no ano anterior, como retomada do crescimento, é definitivamente uma fantasia. Especialmente se pensamos que dia 11 de junho a OCDE apresentou previsão de recessão mundial de pelo menos 6% em 2020 e queda de 7,4% do PIB do Brasil para o mesmo ano. Afirmou ainda que, em caso de segunda onda da pandemia e necessidade de regresso aos confinamentos, projeção é de retração de 7,6% na economia global e de queda de 9,1% no Brasil.
Ano | Produto interno bruto (PIB) a preços básicos: variação real anual |
2015 | -3,15 |
2016 | -2,90 |
2017 | 1,25 |
2018 | 1,27 |
2019 | 1,08 |
O deslumbramento não termina ai. Paulo Guedes vocifera que o presidente está re-eleito em 2022 caso a agenda de reformas seja mantida. Está certo de que possui o apoio do capital privado, especialmente o internacional. A este respeito recebe o apoio de Onyx Lorenzoni que afirma orgulhosamente ter passado o ano todo “andando pelo mundo e fazendo o que? Vendendo o Brasil”, para conseguir investimentos.
É neste momento que começa a rodada de fogo. Ricardo Salles, sinistro do Meio Ambiente, revela a todos que percebeu ter uma “boa mão” e avisar aos outros que é a hora de jogar para ganhar, jogar com tudo e mudar as regras. Sua proposta é aproveitar as oportunidades que a pandemia está dando para que sejam atendidas demandas antigas do capital internacional, em suas palavras: “a segurança jurídica, a previsibilidade, a simplificação”. Lembra aos colegas que grande parte dessa matéria está definida em portarias e norma dos ministérios:
“Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam … é de regulatório que nós precisamo [sic], em todos os aspectos”.
A pandemia de Covid, em que dezenas de milhares de trabalhadores morrem, é um momento de tranquilidade.

O trabalhador que ainda aguentasse assistir a reunião seria apresentado ainda a algumas revelações: ódio de nossa cúpula aos povos indígenas, desrespeito às instituições componentes dos três poderes da democracia brasileira, uma mistura entre turismo e cassino, onde estaria o demônio, mais a prisão de governadores e prefeitos vista como medida de defesa de valores e direitos humanos. Ainda atordoados, nossos companheiros que trabalham no setor público e dão a vida e o talento para atendimento, sem preço e pleno de valor, das necessidades sociais vão descobrir que lhe colocaram uma granada no bolso e são pensados como inimigos pelo ministro da economia e pela risada daquele coletivo. Ainda assim, o general-ministro parece fazer um apelo a um pingo mais de realismo aos presentes lembrando que o Plano Pró-Brasil, aquele que deveria ser o Plano Marshall brasileiro, não passa da coordenação dos planos que todos já estão desenvolvendo. “O que vai ser possível executar ou não, vai entrar (…) nas limitações que nós temos, e o que tiver conflito será levado à decisão do presidente. Agora, nós temos que andar com isso rápido porque (…) o país tá sem esperança, nós temos que fazer isso andar.” Mas, imediatamente, lembra a todos que o pessoal da iniciativa privada os está procurando e por isso rumo tem que ser dado ao problema. A isso, o presidente rapidamente responde: – é mesmo o pessoal da Firjan me ligou.
No resumo da partida é que o projeto anunciado como Pró-Brasil, além de uma apresentação de slides vazia, é muito eloquente em termos de qual parte do Brasil pretende atender. Se os trabalhadores, mesmo os altos magistrados, são vagabundos, também as pequenas empresas não merecem ser salvas pois “lhes trarão prejuízo”, a pauta principal é a acumulação de capital nas mãos de agentes privados, mas só dos grandes. A economia na boca e na pena destes mandatários virou uma pseudo ciência, entre a maquiagem e a renomeação de sucesso ou fracasso (recuperação ou PIBinho) para o mesmo número da estatística. Necessidades do cidadão a serem atendidas por serviços públicos gratuitos, não entram na pauta. Política públicas? “Quem precisar que pague”. É a lógica do “de cada um conforme sua capacidade e para cada um conforme sua propriedade”. É a hora de fazer negócios com o grande capital internacional. Vender o Brasil a bom preço, na baixa, para nunca mais sermos capazes de comprar de volta. Será mesmo que podemos chamar este projeto de nacionalista? Já houve quem chamasse de fascismo entreguista.
Tudo isso no meio de uma gigantesca Pandemia, que só tomou o centro na reunião na voz do próprio ministro da saúde da época, Nelson Teich. O trabalhador assutado, sufocado e com uma granada no bolso, pensa que vai respirar, mas se dá conta de que a preocupação do oncologista era atuar para controlar a percepção do brasileiro o sistema de saúde tem condição de cuidar das pessoas. Como assim? Não é preparar o sistema ou melhorar as condições de trabalho de quem nele atua, mas “purpurinar” a percepção do sistema. Ao mesmo tempo se preocupava com o problema financeiro que está aparecendo para os hospitais que não tratam de Covid e estão atendendo menos, ou seja, faturando menos e por isso podem quebrar. A ideia de articular a política pública de saúde para garantir a vida dos cidadãos, ou pelo menos como investimento para recuperação do emprego e da renda, em um setor que é altamente usador de trabalho, não passou pela cabeça de ninguém. Nada poderia ser mais insensível. Nada poderia ser mais cínico. E estão lá mais de 40 mil corpos estendidos no chão e entre eles o de Aldir Blanc.
(*) Professora de Economia Política do IE/UFRJ e Coordenadora do LEMA.