O Brasil e o Mundo no encontro com o desencontro, por Matheus Sadde (*)

Instgaram de COVID Art Museum

O trabalho e a vida social no capitalismo contemporâneo.

Desde o final dos anos 60, as condições gerais de produção vêm se transformando de modo estrutural. Para que a produtividade do trabalho atingisse níveis mais elevados se fez necessário o desenvolvimento e a aplicação de tecnologias de informação e sistemas de integração em rede capazes de automatizarem a produção capitalista em larga escala. É com esta nova realidade que a subsunção real do trabalho[2] alcançou o seu patamar mais expressivo. Um patamar que faz a subsunção formal parecer puro acessório, principalmente quando se constata o nível assumido pela ‘uberização’ e pela precarização das condições de trabalho no Brasil e no Mundo. Além disso, é importante destacarmos que estas transformações provocaram a redução da necessidade de emprego da força de trabalho ao ponto em que o desemprego estrutural se colocou como uma realidade incapaz de ser revertida, ou até mesmo minorada. Diante de um cenário como este, a ideologia dominante não deixa de fomentar diariamente a ideia de que a garantia das condições de vida é de responsabilidade do indivíduo e não da sociedade e do Estado. O “empreendedorismo” e o “faça por você mesmo” se tornaram as ideologias que permeiam, persistentemente, a subjetividade daqueles que possuem como único meio de vida a venda da força de trabalho. O efeito mais problemático à luta pela emancipação humana causado por esta nova estrutura diz respeito a incapacidade de identificação da condição de classe entre os trabalhadores.

Contudo, um outro aspecto envolvido nestas transformações tem a ver com a nova dimensão pela qual a reificação se efetiva. Diferentemente do que foi vivenciado nos séculos passados em que o mote principal da reificação[3] era a apropriação da dimensão mecânica do trabalho humano, na contemporaneidade, este mesmo processo passa a atuar sobre a dimensão cognitiva do que é o ser humano. Os algoritmos que reproduzem os processos humanos de linguagem, identificação e associação se tornam peças fundamentais à regulação da vida social sob a égide do capital de “acumulação flexível” como denominado por David Harvey. As plataformas digitais que viabilizaram a ampliação da circulação das mercadorias são também os meios de produção de dados valiosos ao controle da demanda por parte de multinacionais. As redes sociais, por sua vez, são os espaços em que a alienação dos indivíduos de sua própria condição social se torna tão extremada que as projeções virtuais, imaginárias e ilusórias de seus usuários se tornam as mercadorias em circulação. O ser humano passa a fetichizar a sua própria imagem como mercadoria. Esta é uma característica que pode ser associada ao papel que o capital fictício[4] tem ganhando no processo de valorização do capital em geral, nas últimas décadas. Processo este que amplia a mobilização do capital, e que faz da especulação um fator preponderante na suspensão do limite entre o real e o fictício, o concreto e o virtual, o verdadeiro e o falseado. Esta suspensão faz da relativização da realidade uma constante em nosso cotidiano, e as reverberações deste fenômeno nas formas de consciência social são perceptíveis. A ciência é reduzida à instrumentalização e à operacionalidade, a Filosofia reivindica o relativismo ontológico e a Arte passa a ter como valores estéticos a fragmentação e a entropia.

Autumm Rhythm ( Number 30) de Jackson POllock

A (des)indentidade de uma subjetividade desencontrada.

Este processo de transformações estruturais não só produziu as conexões que viabilizaram profundas mudanças no mundo do trabalho e no cotidiano da vida social, mas, contraditoriamente, teve como principal resultante um modo de vida individualizante, solitário e isolado. No modo de produção em que o valor do humano é reduzido a sua capacidade (em abstrato) de trabalho, a conectividade facilitada pelas transformações estruturais mais recentes é o caminho pelo qual o capital passa a ampliar a homogeneização e a padronização das subjetividades dos indivíduos. Porém, o que parece haver de historicamente específico neste processo, que é um processo inerente ao modo de produção capitalista, é o fato dele se efetivar através da afirmação da diferença. Ao se alienarem de si mesmos através da afirmação de sua diferença e de sua singularidade enquanto indivíduos, os sujeitos perdem a sua capacidade de identificação consigo mesmos e com os outros. Verdadeiros pares de suas próprias (des)indentificações. A individualização viabilizada pelas relações sociais remotas e virtuais promove a solidão, o desencontro, e a despersonalização, ao mesmo tempo em que amplia a homogeneização das subjetividades dos indivíduos.  

Quando se observa o efeito destas mudanças ao nível das relações internacionais fica evidente a maior integração entre as Nações, no entanto, diferentemente da individualização presente no cotidiano da vida social, a maior integração econômica e política resulta numa ampliação das relações entre as Nações. Porém, se tratam de relações de dominação e de dependência mais profundas e complexas. Este é um elemento central para a análise da conjuntura brasileira na contemporaneidade. Isto porque, ao refletirmos sobre o lugar de um país que nasce de uma descoberta e parece ter o desencontro consigo mesmo como uma marca recorrente na subjetividade de seus habitantes num mundo conectado e internacionalizado, percebemos como a nossa subjetividade é historicamente marcada pela condição colonial. Portanto, se é no encontro com o desencontro que as nossas vidas se efetivam na realidade das relações sociais contemporâneas, vale a pena lançarmos um olhar sobre o encontro que o Brasil vem realizando nestes tempos de desencontro.

Beeld Bas van der Schot/De Volkskrant /Reprodução ( 2018)

O descoberto de 1500 no desencontro de si mesmo.

A herança histórica colonial, a dependência econômica e cultural e a Independência política não autônoma são algumas das condições que estruturam as relações sociais no Brasil. Tais condições não só fundamentam a dinâmica destas relações no cotidiano da reprodução da vida material, mas também, e talvez sobretudo, substanciam as vivências, os pensamentos, e os afetos do que é ser brasileiro. Sobre esta ótica, a subjetividade brasileira possui, portanto, a subserviência, a passividade em relação à autoridade e ao estrangeiro, o complexo de inferioridade, a carência, a falta de autossuficiência e de autonomia, a desintegração e a (des)identidade nacionais como as suas características mais profundas. Trata-se de uma subjetividade que nasce invadida, dominada, explorada e sucumbida, e que parece ter como contradição fundamental a relação entre o interno e o externo, o nacional e o estrangeiro, o de dentro e o de fora. Ou seja, o Brasil parece ser um lugar estranhado, alienado de si mesmo, e voltado ao externo.

Todos estes elementos que sintetizam a nossa subjetividade manifestam-se de modo particular no contexto do Neoliberalismo. É neste contexto, em que a nossa integração dependente com o capitalismo mundial ganha um patamar globalizante, que a reificação, o fetiche, e a capitalização da vida (os aspectos subjetivos próprios ao capitalismo) se tornam meios de dissolução e de fragmentação da esfera pública da vida social. Algo que, consequentemente, afeta a nossa subjetividade colonizada de modo a nos retirar o espaço em que a construção de uma unidade nacional desenvolvida, autônoma e independente se apresentava como potente. Isto é, o embate do neoliberalismo se dá contra a busca pela nossa identidade e autonomia no sentido de capturar o que nos é potencialmente comum, nos deixando, portanto, sem esperanças, desarticulados e impotentes. Por isso, pode-se apontar como os principais espaços de luta no Brasil dos tempos neoliberais aqueles que remetem à esfera pública da vida social.

No entanto, o aspecto privatizante do neoliberalismo, além de sufocar e de nos deixar impotentes e esvaziados de sentido, toma a sua forma neofascista a partir do momento em que o fracasso do sonho desenvolvimentista se explicita como uma condição insuperável, e se elege os responsáveis por ele. A faceta submissa da nossa subjetividade colonizada passa a desejar vingança contra aqueles que retiraram o sonho de vida americano e as conquistas econômicas dos anos mais recentes, e se julga no direito de fazer isso pelas ‘próprias mãos’. O autoritarismo miliciano e o ódio se tornam as armas desta cruzada paranoica e esquizofrênica que elege como inimigos a diferença, o trabalhador, o pobre, o público, o feminino e o pensamento crítico e libertário. Entretanto, para aqueles que partem de uma concepção da realidade radicalmente crítica e que lutam pela emancipação humana, o mais desafiador e dolorido de ser reconhecido é o fato desta cruzada ter em suas fileiras trabalhadores, pobres, servidores públicos, mulheres, negros e LGBTs.

É neste ponto em que a contradição posta na subjetividade do capitalismo contemporâneo se encontra com a nossa subjetividade colonizada nos tempos do neoliberalismo. A absolutização de um ego colonizado e que, neste contexto histórico se percebe descrente de seu encontro consigo mesmo, não só perde a sua capacidade de identificação com o nacional e com o comum, mas também, se revolta através de um delírio essencialmente fascista. A História mais uma vez nos pergunta. O que fazer?

Jonathan Borofsky ( 1987)

(*) Doutorando do Programa de Pós Graduação em Economia do Instituto de Economia da UFRJ e Pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (LEMA) do IE/UFRJ e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre Marx e o Marxismo (Niep) da Universidade Federal Fluminense.

[2] O termo subsunção é uma das principais categorias utilizadas por Marx com o objetivo de teorizar sobre as características gerais do processo de trabalho no modo de produção capitalista. Tal categoria se refere, em termos gerais, à subordinação do trabalho ao capital. As formas de organização do trabalho, os processos específicos, os procedimentos, os métodos, as técnicas e toda a dinâmica envolvida no processo de trabalho é dominada e regulada pelo processo de produção capitalista. Isto é, pelo processo de produção em que o aumento da força produtiva do trabalho alcançado pelo emprego de técnicas e equipamentos mais produtivos é um dos caminhos de ampliação do mais valor. A subsunção real do trabalho se diferencia da subsunção formal no sentido de que a primeira reflete um amplo desenvolvimento das forças produtivas viabilizado essencialmente pelo uso da maquinaria e da ciência. 

[3] Esta categoria se refere a um fenômeno subjetivo inerente ao modo de produção capitalista, em que todos os aspectos que compõem e caracterizam o ser humano adquirem determinações de caráter “coisal”.  

[4] O significado desta categoria pode ser sintetizado no que é usualmente chamado de capitalização. Este é um fenômeno que, no modo de produção capitalista, depende tanto da integração do sistema de crédito ao processo de acumulação de capital quanto da transformação da capacidade de rentabilidade (qualificação essencial de todas as formas de capital) em mercadoria. Deste modo, os títulos de dívida resultantes das negociações viabilizadas pelo sistema de crédito que adquirem o caráter de mercadoria são transacionados em mercados específicos cujo objetivo específico é adquirir remunerações positivas. As ações, os títulos da dívida pública e os derivativos são alguns dos exemplos de capital fictício. 

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